sábado, 15 de agosto de 2009

A AAL e a I Bienal do Livro e da Leitura do Acre

A CABEÇA NO FUNDO DO ENTULHO DA LEITURA NA FLORESTA
Fernando Monteiro

Ao entrar numa das mega-livrarias reluzentes de produtos da chamada “indústria cultural” – entre os quais se enfileiram os livros, esses sobreviventes de um já remoto mundo –, o leitor médio brasileiro com certeza estará em busca, basicamente, de quatro tipos de obras:

1) Os best-sellers, isto é, a literatura de entretenimento criadora de produtos para serem consumidos como se consome litros de Coca-Cola;

2) As obras factuais, referentes a temas buscados no mundo tangível e real (exemplos: o livro de Dráuzio Varella sobre Carandiru lido junto com novo um título prometendo “sensacionais revelações” sobre o assassinato do presidente Kennedy etc);

3) Os livros de auto-ajuda – que não ajudam ninguém a respeito de nada, quer dizer, ajudam [sim] a engordar o faturamento das suas editoras e até dos seus autores) e, em QUARTO e último lugar, o leitor estará procurando, por fim, LITERATURA propriamente dita.

Não adianta vir pra cima de mim tentando dizer que, ora, é tudo literatura.

Sabemos que não é. Por exemplo: Lya Luft sabe, perfeitamente, que o que ela deu para escrever, nos últimos anos, não é literatura de modo algum, e não adianta ela até ameaçar (conforme ameaçou, num programa televisivo de entrevistas) que “se retiraria” etc, caso os entrevistadores continuassem a chamar de auto-ajuda a auto-ajuda da lavra recente da senhora Luft, com a qual Lya ajuda o editor Sérgio Machado a ajudar a conta bancária própria com os novos títulos da “escritora” gaúcha auto-ajuditícia.

Os livros factuais que estão aí, na maioria praticamente absoluta: não adianta enrolar, também neste “segmento”. Truman Capote escreveu um grande livro – A Sangue Frio – com base na realidade da vida de dois assassinos condenados à morte, mas esse conteúdo o talentoso norte-americano transtornou e transformou, fez virar literatura, como novo tipo de “reportagem” quase ficcionalmente tratada etc etc. O futuro monturo de Carandiru mornamente recordado pelo médico Varella tem alguns momentos de interesse, sim, mas o capote de Capote era um número maior, e isso serve de comentário aos outros Carandirus plantados nas vitrines brilhando como catarro em parede.

Recuemos um pouco no tempo: há menos de trinta anos, a então boa cabeça do leitor brasileiro estava motivando matéria na revista VEJA (12/08/1981). O título era “Qualidade é sucesso”, e o texto – não assinado – assinalava “a volta da literatura de qualidade, com os clássicos nas livrarias e Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, comemorando um semestre na lista dos mais vendidos no país”.

Recuemos mais ainda: a primeira relação brasileira dos livros mais vendidos, publicada em 1978, apresentava um romance de Érico Veríssimo – Incidente em Antares –, o estudo A Hegemonia dos Estados Unidos, de Celso Furtado, e um ensaio do americano Alvin Toffler (alguém se lembra do futurólogo?) como campeão de vendas: O Choque do Futuro. Consultando-se a relação, nos meses subsequente, Érico comparece com o primeiro volume de sua autobiografia – Solo de Clarineta – e o cinematográfico O Exorcista, de William P. Blatty, aparece nas primeiras posições entre os estrangeiros, numa altura em que a revista separava obras nacionais e de fora (embora misturasse ficção com não-ficção).

No ano “glorioso” de 1981 – da matéria na VEJA – o leitor brasuca havia levado ao primeiríssimo lugar (ao longo de cinco meses) o já citado e excelente Memórias de Adriano, e, em seguida, estava lendo Sempreviva – romance do bom Antonio Callado – e se mostrava também influenciado pelo cinema, ao guindar O Beijo da Mulher-Aranha, de Manuel Puig, às posições de topo nas quais O Exorcista já fizera ecoar aqui a tendência observada pelo também roteirista Vidal. Na lista memorável, vinha, em seguida, um livro mais ou menos (Um Homem, de Oriana Fallaci, com alguma qualidade pelo menos do “novo jornalismo” etc), e O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, na quarta e quinta posições, respectivamente, sendo o argentino um freqüentador ocasional do topo da relação, no tempo daquele país ainda civilizado, literariamente, que foi, até pouco tempo, o Brasil que, em 1981, se mostrava surpreendente mesmo era na “sexta posição” (a confiar na VEJA etc) de agosto daquele ano: senhores e senhoras, brasileiras e brasileiras, nordestinos e sudestinos, o nosso Pindorama estava lendo – com cinco mil exemplares vendidos em um mês – nada mais nada menos que Poesia, de T. S. Eliot!

Poeta considerado difícil e requintado, Eliot tivera a primeira edição de uma antologia da Nova Fronteira esgotada no primeiro mês do lançamento no segundo semestre do ano da graça de 1981, o tal cuja dos “livros mais vendidos” prosseguia com a sétima posição ocupada por uma obra do excelente Julio Cortázar – Alguém que Anda por aí –, seguida sabem do quê? Outra surpresa: dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Marcel Proust, esgotada em dois meses, enquanto 190.000 exemplares de Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski, haviam sido vendidos em bancas de revista, na coleção “Gênios da Literatura”, selecionada com notável apuro.

É tudo verdade, como diria Orson Welles. (Ou, pelo menos, é a verdade de VEJA, vejam bem).
O que deu errado?

Menos de trinta anos depois, na selva atual, você vai e confere que estamos patinando, nas listas, no mangue pantanoso dos Paulos Coelhos, ou esforçamo-nos para alcançar as 100 Escovadas Antes de Ir para a Cama (Melissa Panarello), queremos saber Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor? (Allan e Barbara Pease), se Tudo Valeu a Pena (Zibia Gasparetto) para o Homem-Cobra e a Mulher-Polvo (Içami Tiba) e também Quem Mexeu no Meu Queijo? – pergunta transcendental do título da obra de Spencer Johnson (seja lá quem for).

Harry Potter e a pedra filosofal já alcançou a marca dos 110 milhões de exemplares vendidos, e é o décimo colocado entre na lista das maiores vendagens de livros de todos os tempos da semana passada – logo depois do Livro dos Mórmons e de outros campeões como o Dom Quixote, de Cervantes, o Livro de Pensamentos de Mao, o Alcorão e a Bíblia Sagrada, o super-campeão, com a assinatura do autor mais lido de todos os tempos: Deus (embora Paul Rabbit pretenda desbancá-Lo do ranking, em mais alguns anos, mas isso é outra história).
Nestes tempos de pouca fé, as pessoas procuram livros que lhes fortaleçam a crença mais em si próprias do que no Autor de longas barbas. Atendendo a isso, Os segredos da mente milionária, de T. Harv Eker logrou ocupar a terceira posição, durante meses, nas listas profundamente mudadas de um mundo em que tudo vale a pena, Lya, se a alma for pequena, Transformando o Suor em Ouro, segundo o também escritor Bernardinho. Sim, estão transformando suor – e outras matérias secretadas pelo nosso corpo – em ouro, nas livrarias atulhadas de “auto-ajuda”.
Você tem centenas de opções, incluindo os livros da já mencionada Luft, além de Como se tornar um líder servidor, de James Hunter, A lei da atração, de Michael Loster, Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, de Allan Pease, Quem mexeu no meu queijo?, de Spencer Johnson, A estratégia do oceano azul – como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante, de W. Chan Kim e Renée Mauborene, Desvendando os segredos da linguagem corporal, de Allan Pease e Barbara Pease, Pai rico, pai pobre, de Robert T. Kiyosaki, Aprender a viver, de Luc Ferry, Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, A ciranda das mulheres sábias e Mulheres que correm com os lobos, ambos de Clarissa Pinkola Estes, As 48 leis do poder, de Robert Greene, Dinheiro: os segredos de quem tem, de Gustav Petrasunas Cerbasi, A física da alma, de Amit Goswami (um detalhe: os escritores de auto-ajuda, brasileiros e estrangeiros, parecem gostar de nomes estranhos; Lya Luft não é tão simples como Maria da Silva, mas é certamente superado por T. Harv Eker, W. Chan Kim, C. Pinkola Estes, G. Petrasuna Cerbasi, Amit Goswami e outras excentricidades talvez escolhidas para fazer supor que a “ajuda” está vindo de extra-terrestres disfarçados de autores humanóides)...

Continuando: há outros títulos, nas listas, que revelam a presença maciça do gênero que fez a fortuna de Lair Ribeiro (que, por sinal, desapareceu das últimas listagens). Não posso deixar de ser citado Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos cerca, de Sthepen Dubner (outro nome duvidoso) e Steven Levitt, além do encolhido O gerente minuto, saído da cachola de certo Kenneth H. Blanchard. Seu conterrâneo Jack Welch – que tem nome de boxeador de Los Angeles – comparece nas listas com Paixão por vencer, na linha da Lya de Perdas e ganhos (será que ela seguiu na trilha da autora de Perdas necessárias, de Judith Viorst, também nas listas das mais vendidas, literalmente?). E três sujeitos batizados com os nomes de Bruce Patton, William L. Ury e Roger Fish, se juntaram para escrever Como chegar do sim à negociação de acordos sem concessões, também muito bem vendido, sempre segundo as listas das revistas.

No topo delas, algo de qualidade inequívoca como Adriano da Yourcenar foi substituído pela obra campeã do indefectível Khaled Hosseini, O caçador de pipas, imediatamente seguida por A cidade do sol escrito às pressas, pelo mesmo Khaled, para aproveitar a “onda” de Irã, Afeganistão, Iraque, Paquistão e outros países que estão na moda literária, sejam em termos de ficção ou de “reportagem”. De Bagdá, com muito amor, de Jay Kopelman e Melinda Roth e O livreiro de Cabul, de Arne Seirstad (ao qual se seguiu o autobiográfico Eu sou o livreiro de Cabul, de Shah Muhammad Rais, personagem real de O livreiro), apareceram, inde-fecal-tivelmente, com as suas comerciais abordagens de antigas culturas que pelo menos a jovem Arne nunca teve o interesse de estudar à sério.

O que deu errado? A pergunta está lançada para o debate da I Bienal da Floresta do Livro e da Leitura.
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Uma silenciosa revolução na floresta


Luiz Ruffato


O que me espera numa cidade situada a 3,5 mil quilômetros de São Paulo, em plena Amazônia? Esta a pergunta que me fazia, sentado no saguão de embarque de Congonhas, enquanto aguardava o vôo que me levaria a Brasília e de lá a Rio Branco, no Acre, um estado do extremo oeste do Brasil, para participar da I Bienal da Floresta do Livro e da Leitura. Após uma longa e cansativa viagem, finalmente desci no pequeno aeroporto, alta madrugada, e o carro que me levou ao hotel deslizou suave pela estrada deserta, como se temesse incomodar os moradores.

E a manhã seguinte se me abriu em surpresas. Caminhei por uma cidade, de 300 mil habitantes, de ruas limpas e tráfego organizado, de calçadas despidas de mendigos ou meninos pedintes, nem camelôs, nem prostitutas – triste espetáculo que, infelizmente, se tornou paisagem comum nas grandes metrópoles brasileiras. O sol iluminava a Praça da Revolução, onde vários quiosques exibiam livros, avidamente manuseados por jovens. Numa esquina, imponente, ergue- se a Biblioteca Pública do Acre, um edifício moderno que se integra perfeitamente ao conjunto de bem conservados prédios surgidos nas primeiras décadas do Século XX. Inaugurada em dezembro do ano passado, a biblioteca conta com um auditório para 120 pessoas, uma filmoteca, computadores com acesso livre à internet e um acervo de 42 mil títulos – sendo que, este ano, foi destinado R$ um milhão (USD 507,1 milhares) para a compra de novos livros.

Se a facilitação do acesso à cultura se limitasse a essa biblioteca, já poderíamos talvez nos dar por satisfeitos. Mas não: existem ainda mais de 100 pontos de leitura espalhados por todo o estado, pequenas bibliotecas que se tornam centros de convivência cotidiana (é bom lembrar que, embora possua pouco mais de 152 mil quilômetros quadrados, o Acre tem uma população pequena, cerca de 700 mil habitantes distribuídos em 22 municípios). Além disso, há em Rio Branco uma outra biblioteca, dedicada exclusivamente a questões ligadas ao meio-ambiente – tema, aliás, no qual o estado vem se destacando, ao defender a exploração da floresta com equilíbrio e harmonia.

No quesito educação, irmão gêmeo e indissociável da cultura, também a surpresa. O Acre tem hoje o maior salário inicial para um professor de todo o país, R$ 1,6 mil (USD 811) para um regime de trabalho de 30 horas semanais, sendo 16 dedicadas à sala de aula. Só para se ter uma idéia, o mesmo valor em São Paulo, o estado mais rico da federação, é 40% menor... E as instalações físicas das escolas são bastante adequadas – ambientes limpos, organizados, confortáveis, o que, como qualquer educador sabe, é essencial para o bom desempenho dos alunos.

Raras vezes me deparei no Brasil com um Poder Público realmente empenhado em disponibilizar aos cidadãos o acesso direto e concreto à cultura e à educação de qualidades. Talvez somente tenha observado algo semelhante na parceria entre a universidade e a prefeitura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, onde há mais de 25 anos ocorre uma já tradicionalíssima Jornada Literária.
No caso do Acre, a mudança adveio após o martírio do líder seringueiro Chico Mendes e da atuação heróica e visionária de Marina Silva. Os novos administradores apostaram na mudança de sentido na condução da coisa pública, e, após quase um século de dominação de uma elite totalmente desvinculada dos anseios da população, promoveram uma radical opção pela educação, a cultura e o lazer. Com isso, no meio da floresta, estamos assistindo a uma verdadeira revolução, mas uma revolução silenciosa, bem diferente daquela bufonaria de certos líderes latino-americanos, que parecem saídos das páginas dos escritores que traçaram a caricatura dos ditadores das repúblicas bananeiras, mais afeitos aos discursos vazios e às atitudes ridículas, mas midiáticas, que a efetivas mudanças. A lição que fica: quando queremos, podemos mudar o mundo que nos cerca.

Crônica de Luiz Ruffato, publicada na Revista ÁFRICA 21, n. 31, 16/07/ 2009.

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Não abrace táxi, junte com cambito

RIO BRANCO - Se alguém pedir: por favor, pode me destentar este cheque, e você souber que o sujeito é farinha de cruzeiro, destente. Se tiver dinheiro, tudo bem, é tarefa que você pode realizar sem abraçar táxi. Vai ser como juntar com cambito. E se avistar um homem usando bosoroca não estranhe, ele é homem mesmo. Ao ouvir cuida menina, não se preocupe. Agora, saindo por ai, cuidado com as peremas. Grande e vasto é o Brasil, digo sempre, sem medo do clichê. Porque é mesmo.

Felizmente, viajar por causa da literatura tem me ajudado a conhecer o país e, principalmente, descobrir as múltiplas variações de nossa língua. Vou incorporando aos meus caderninhos os vocabulários locais, além de trazer dicionários regionais. Destentar é descontar. Abraçar táxi é trabalho difícil (diga tachi e não táxi), é sofrer. Bosoroca é uma bolsinha onde se carregam cartuchos. Cuida menina significa se apresse! Farinha de cruzeiro é gente boa, confiável, enquanto juntar com cambito é coisa fácil de fazer. Peremas são mulheres dadas, oferecidas, assanhadas e até mais do que isso.

Aos dicionários de gauchês e e de pernambucanês, já acrescentei o baianês e o cearês. Agora tenho o acreano, do Gilberto Braga de Mello, delicioso. Gilberto, como todo acreano, firma pé. Apesar da reforma ortográfica, os acreanos, com E, se recusam a se tornar acrianos, com I. Que se mantenha o E, clamam, indignados. Ouçamos, minha gente, essas vozes distantes, elas não estão separadas do Brasil.

Eu tinha saído de minha palestra no auditório da Filmoteca que está acoplada a Biblioteca Estadual, uma preciosidade encravada no centro de Rio Branco, a capital. Um edifício moderno, funcional, com grandes janelas, muita luz, internet com acesso grátis, chão sofisticado com ladrilhos hidráulicos, originais, vindos do antigo prédio que havia no lugar. Uma das mais belas bibliotecas que vi no Brasil, opinião compartilhada por um especialista de gabarito, José Castilho Marques Neto, que comanda o Plano Nacional do Livro e Leitura e, encantado, não se cansou de fotografar tudo. Os acreanos (com E) estão dando uma lição ao Brasil em matéria de biblioteca.

A biblioteca fica de frente da praça onde aconteceu a primeira Bienal da Floresta do Livro e da Leitura, nome poético, para um evento ocorrido em 35 stands de livrarias e editoras, alem do uso de auditórios por toda a cidade. A idéia da Bienal foi do jovem governador Binho Marques que convidou Pedro Vicente Costa Sobrinho, mestre que leciona sociologia rural , e Helena Carloni, que dirige a bela (repito) biblioteca. Juntou-se a eles Daniel Zen, presidente da Fundação Cultural. E tudo aconteceu.

O homenageado foi uma figura singular e sempre bem-humorada, o contador de histórias e artista plástico Francisco Gregório Filho, cuja figura lembra um patriarca com sua barba branca e magreza de um asceta. Um homem que há meio século batalha pela cultura acreana, tendo sido várias vezes presidente da Fundação Cultural do Estado. Acreanos são Chico Mendes, Marina Silva, Armando Nogueira, João Donato, Glória Peres. Cerca de 40 escritores agitaram a semana, entre eles Luiz Ruffato, Marcus Acioly, Marcio de Souza, Fernando Monteiro, Luiz Galdino, Nelson Patriota, Jorge Tufic, Fabio Lucas, Homero Fonseca, Jomard Muniz de Britto, Alexei Bueno, Gilberto Mendonça Telles. Tudo bancado pelo governo. Clodomir Monteiro, presidente da Academia Acreana de Letras, nomeou a Fabio Lucas e a mim membros correspondentes da AAL. Somos de lá e somos de cá. Academias se abrem umas as outras.

Um céu turquesa estendia-se avassalador sobre nós, à beira do rio Acre, enquanto cervejas geladas e empadas imensas chegavam neste bar do Mercado Velho, construído em 1929, e recém restaurado. Para um lado, as águas seguem em direção ao rio Purus, que penetra no Peru. Pelo outro, vão em direção à Bolívia, marcando fronteira em longa extensão. O poeta Naylor George, apaixonado pela sua cidade, conhecedor de cada canto, cada prédio, cada rua, cicerone dedicado, me diz que daqui é mais fácil chegar ao Machu Pichu que a São Paulo. Aqui estamos mais próximos dos Incas e Maias, se quisermos nos exceder na imaginação.

No rio, lá embaixo, catraias navegavam de uma margem à outra. Custa 50 centavos a travessia. Foi lembrado o tempo em que havia dois cinemas na cidade, um no Primeiro, outro no Segundo distrito. Um dos ricos, um dos pobres. Em Rio Brando pode-se dizer que, como em Paris, há rive gauche e rive droite. O filme era o mesmo nos dois cinemas, as sessões começavam com diferença de horários. Assim, terminado o primeiro rolo em um, o catraieiro Goiaba, figura popular, agarrava a lata e corria, atravessava o rio, no braço, a remo, entregava no cinema. A sessão inteira era ir e vir. Dias de enchente, águas revoltas, sofria o pobre Goiaba. Dizem que ele nunca trocou um rolo.

Depois de visitar o mercado de verduras e frutas (que nada tem a ver com o mercado antigo, tombado), onde pode-se comprar a banana comprida (cada uma tem entre 30 e 40 centimetros), a farinha de mandioca amarela, a pimenta ou castanhas do Pará preparadas artesanalmente, saborosas, atravesse para o Segundo Distrito e percorra as casas e lojas restauradas que pertenceram aos primeiros comerciantes na fundação da cidade, os sírios libaneses. Caminhe pelo calçadão à beira rio cheio de bancas de flores amazônicas, entre elas o Uirapuru e a Caatinga de mulata e de mangueiras centenários tombadas pelo Patrimônio.

Aqui nos idos 900 ancoravam os batelões e as chatas que traziam mercadorias da Europa para os ricos (as mulheres usavam vestidos com alças de ouro), que freqüentavam o fechadíssimo, Tentamen, clube da elite, restaurado em todo seu esplendor e hoje é alugado para festas e eventos. Ainda existem exemplares gigantes do Apui, cuja seiva os índios usavam para colar ossos fraturados. Vá até a gameleira imensa onde a cidade se iniciou. Diante do rio, o bar do Grassil Roque com um caldinho de feijão fervente de rachar a lingua. Ao lado, na Varanda do Porto, do Telmo, bebe-se cerveja em mesas quase no espaço sobre o rio Acre.

Em frente, uma das dezenas de Casas de Leitura (com centenas de poesias pregadas nas portas e paredes) que a cidade possui, que acolhe principalmente crianças. Além dessas casas, pelos parques espalham-se os Quiosques com bibliotecas que o povo utiliza a granel nos finais de semanas, feriados, fins de tarde. Admirado com a noite fresca? São os ventos que vêm da Cordlheira dos Andes.

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